Preso numa Herança

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A dor e sofrimento dos incêndios, a que assistimos – inertes – há duas semanas, resulta
também de uma realidade estrutural do nosso território: a realidade de um país preso em
heranças.

Inventei um jogo que provavelmente só a mim diverte e que tem servido para chatear
as pessoas à minha volta. Só tem uma regra e não depende da sorte ou da aptidão do jogador.
A regra é andar pelo país, especialmente fora das áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto,
olhar para um prédio rústico ou urbano com aspeto abandonado e especular se aquele prédio
está ou não “Preso numa Herança”.

A premissa do jogo até pode não parecer divertida, mas asseguro que é: ficcionar
situações e conversas à volta do pesadelo burocrático que são os processos de inventário é
algo que francamente diverte. Afinal, o Portugal de hoje bem podia servir de contexto para uma
adaptação cinematográfica do Bleak House, de Charles Dickens.

Terminado o segmento irónico, infelizmente, o que não diverte é o facto de essa
especulação estar acertada na maioria das vezes em que é feita. Segundo recentes
declarações à Sic Notícias, Pedro Bingre Amaral, professor de Engenharia Florestal no
Politécnico de Coimbra, refere que quase 60% “do país” está registado em nome de defuntos.

Há alguns meses era noticiado que pelo menos 30% dos terrenos rústicos estão ainda
registados em nome de pessoas que já morreram. Seja qual for o número, o resultado da
incapacidade política de atualizar o direito das sucessões – que impede as pessoas de
disporem livremente dos seus bens, forçando a atribuição de parcelas da herança em função
de um modelo de família que está ultrapassado – está, uma vez mais, à vista de todos nos
últimos dias.

Não se compreende a total falta de interesse por estas matérias que demonstram os
deputados eleitos por todos nós. Todos os anos ardem hectares de floresta do nosso país e
está demonstrado que a área ardida resulta (em grande medida) da falta de gestão do
território, mas não se legisla para acabar com a fonte do problema. A fonte do problema – do
ponto de vista jurídico pelo menos – é claramente o facto de parte do Código Civil português
estar datado e as pessoas terem de passar décadas da sua vida nos tribunais a discutir um
enquadramento legal que só fazia sentido na sociedade do século XIX.

São inúmeros os exemplos de situações que resultam da desatualização da nossa lei
civil a nível de direito da família e das sucessões e que têm repercussões não só no que
acontece com o território, mas até com o que surge noutros aspetos da vida em sociedade.
Veja-se o que acontece nas empresas – que tantas vezes ficam paralisadas pela morte de um
sócio e pela sucessão de herdeiros que estão totalmente alheios à realidade do negócio,
propositadamente gerando conflito e instabilidade na vida da empresa e, consequentemente,
também nos seus trabalhadores.

Mais do que discursos sensacionalistas e mensagens de pesar, é necessária a adoção
de reformas legislativas que permitam verdadeiramente ultrapassar a triste realidade a que
assistimos nestes últimos dias e que é reflexo de um profundo problema que urge solucionar.

Autoria: Isabel Arantes
Foto: Pedro Sarmento Costa – Lusa

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