Os tostões da independência

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Artigo de opinião de Helena Barreto Ferreira
Não podemos falar de empoderamento ou emancipação feminina sem falar de dinheiro e independência financeira. Ignorar este fator decisivo é tentar tapar o sol com a peneira. Podemos, e devemos, abordar muitos outros aspetos, mas este continua a ser decisivo e castrador.

Sabemos que estamos de momento na luta pela igualdade salarial entre homens e mulheres. Sabemos que, por razões fácies de explicar, mas não aceitáveis, as mulheres ainda recebem, em Portugal, em média menos 17% que os homens por exercerem a mesma função. Sabemos que há em curso planos para que essa discrepância seja ilegal e que as empresas sejam, a curto e a longo prazo, obrigadas a eliminar essa diferença. E enquanto estas medidas são louváveis, há muito mais a ser dito acerca da condição financeira feminina.

Ainda ouvimos amiúde, aliás é linguagem comum, entranhada até à alma, vindo da boca de muitas mulheres, a frase que nos indica a sua dependência: O meu marido não me deixou: não deixou comprar; não deixou escolher; não deixou cortar (o cabelo); não deixou vestir. Ainda continuamos (nós mulheres) a pedir permissão até para gastar o nosso dinheiro. Aliás o dinheiro das mulheres ainda é visto como dinheiro da casa, da família, sendo que o dos homens também o pode ser, mas não na totalidade. Antes que se ericem aí todos em altos gritos de que não é verdade, de que eu sou homem e o meu dinheiro vai todo para a família ou eu sou mulher e não peço autorização a ninguém para gastar o meu dinheiro, deixem-me que vos diga que não estou a falar de vocês, porque vocês não se me afiguram como uma maioria. Vocês são a exceção. Ainda assim, aconselho que leiam o resto do texto. Serão vocês deveras parte da exceção?

Um dia um amigo contava-me a história do seu avô que depositava fielmente o salário na mão da mulher e que depois lhe ia pedindo algum para comprar as suas coisas: uma cerveja, um charuto (outros tempo), o jornal. E a mulher dava ou não conforme achasse certo ou ajuizada a compra. Onde é que já vimos esta história acontecer? Em quase lado nenhum com esta ordem dos protagonistas e em muitos, muitos sítios com os protagonistas em posições inversas. A existência deste exemplo inverso à realidade mais comum não lhe retira o peso. A realidade mais comum, aquela que se verificava há poucos anos de forma quase generalizada, mas que ainda se verifica hoje em dia é oposta: não é um caso isolado. Conversem com mulheres, trabalhadoras, com salário seu, com família constituída e ainda vão ouvir acerca de muitas coisas, coisas pequenas até, que não compraram porque o marido não quis, ou que antes de decidirem comprar têm que falar com o marido. Não estou com isto a querer dizer que os gastos entre casal não devem ser discutidos: devem, se o casal assim o entender e para melhor gestão, estou a dizer que enquanto muitas mulheres não gastam sem primeiro avaliarem a sua compra junto do marido, (muitas não lhe chamam “pedir permissão”, mas no final de contas vai dar ao mesmo), enquanto isso os homens, para gastos da mesma monta, não se preocupam em conferenciar com a esposa. Faz parte do seu universo assumido, da sua posição de privilégio o não sentirem que precisam de partilhar, afinal eles têm e sentem autonomia para o fazer.

E aqui reside todo o problema, o sentir-se ou não com direito a decidir de forma totalmente autónoma. Esse sentir, esse autointitular-se como independente foi inculcado pela sociedade e pela educação. Crescemos com imagens romantizadas, que chegam até nós das mais variadas formas, de mulheres que pedem ao marido aquela televisão no natal; de mulheres que suplicam com olhinhos de Bambi por aquele anel da montra; por mulheres que usam o seu charme para levar o marido a oferecer-lhe (como se fosse para si e não para a casa) uma nova máquina de lavar ou um frigorífico ou um fogão. Nunca me cruzei com uma publicidade, ou filme, ou livro em que o marido tentasse convencer a mulher a oferecer-lhe um faqueiro novo, ou um conjunto de pratos, ou um bule de porcelana fina. Estas mensagens chegaram aos dois géneros de forma distinta, mas marcaram os dois: as mulheres absorveram a subserviência que lhes ia sendo enviada e os homens absorveram a superioridade, a posição de privilégio e de decisor.

Tenho uma amiga que se proclama à boca cheia como imune à publicidade, como capaz de não ser influenciada. Ora eu acho que ninguém é imune à publicidade ou à pressão social ou às milhentas formas de doutrinação e enformação (colocar-nos em formas) que nos chegam todos os dias. Sim, escapamos a umas, evitamos outras tantas, mas não somos uma ilha. Se a representação que nos circunda nos devolve uma imagem consistente de uma mulher que antes de tomar decisões financeiras, mesmo as de pequena monta, procura a aprovação do marido, subentendida está a mensagem de que se essa aprovação não existe, então comprar aquilo será um ato de transgressão, um erro. Já os homens recebem a imagem oposta: nas suas mãos está o poder de decisão, ele é o elemento chave do casal, aquele a quem cabe a “responsabilidade” de decidir, mas também o poder de decisão; o homem recebe a ideia de que se a sua mulher não o consulta, então está a falhar e nunca, ou quase nunca, lhe é dito que ele deve pedir autorização, pedir opinião ou aprovação da sua esposa. Ainda lhes é passada a imagem de que os produtos da casa, tais como eletrodomésticos, bens essenciais à família, loiças e afins são prendas para a esposa.

Que valores suportam esta ideia de que um frigorífico novo é uma prenda para a esposa? E quem diz um frigorífico diz uma panela, ou uma varinha mágica ou o conjunto de lençóis que fazia falta. Reparem que não estou aqui a incluir aquelas coisas que gostaríamos de receber por gosto ou por apreço – como aquela forma de bolo ridiculamente cara, ou um conjunto de tolhas que nem fazia tanta falta, mas gostamos imenso, ou um bule de chá que custa os olhos da cara – estou a falar de apelidar de prendas os bens essenciais à família. Se o frigorífico era já pequeno ou velho e precisava de ser mudado porque diabo se assume que é uma prenda para a esposa? Quando muito é uma prenda para a família, esposa incluída, mas não única benificiária. Chamem-me egoísta, mas as minhas prendas quero que sejam para mim. O uso que depois faço delas pode até ser coletivo, como fazer um bolo para a família toda com aquela forma ridiculamente cara, mas a forma é minha e não veio suprir uma necessidade básica, antes veio ao encontro do meu gosto.

Voltando à questão essencial: este doutrinamento que nos inculca papéis estanques nas relações e que nos diferencia atribuindo poderes de forma aleatória aos géneros tem vindo a ser desafiado, está neste momento em mutação. Já ouvimos aqui e ali, e cada vez mais amiúde, homens que dizem a frase: “tenho que ver isso com a esposa, gastos desses é ela que decide”, mas estamos ainda longe de haver uma equiparação.

Reparem que não queria que os homens se sentissem castrados a ponto de precisarem de pedir autorização às esposas, ou lhes dessem controlo absoluto sobre o seu dinheiro – nada disso: o ideal seria que ambos sentissem que tinham autonomia para os seus gastos e as suas decisões e ambos sentissem vontade de partilhar a tomada de decisão nos gastos de grande monta. Mas isso só poderia acontecer se duas condições se verificassem: primeiro, se ambos valorizassem a opinião do outro de igual modo, e isso só aconteceria se ambos recebessem formações e enformações por parte da sociedade nesse sentido; e, em segundo lugar, se ambos tivesse o mesmo poder económico.

Ora este último ponto não se verifica na generalidade. Além da diferença salarial referida no início do texto, há muito mais a acrescentar e, neste caso, a retirar poder económico à mulher. Assumindo que a mulher trabalha, sabemos que são elas que maioritariamente faltam para cuidar dos filhos em caso de doença; são também elas que faltam ou pedem baixa para cuidar de outros elementos familiares idosos ou doentes que precisem de apoio. E estas situações, além de significarem trabalho, desgaste emocional e muitas outras questões aí associadas, significam desde logo um corte ou redução salarial. Essa redução, dadas as despesas familiares que se mantêm estáveis, significa uma redução da independência financeira.

Além disso, sabemos também que na esmagadora maioria dos casos (novamente) são as esposas que ficam em casa a cuidar das crianças, quando a situação assim o exige. Esta situação consegue ser ainda mais traiçoeira, quase uma armadilha familiar. A mulher quer prestar os melhores cuidados às crianças, voluntaria o seu trabalho de modo a que a vida familiar seja mais calma, foge de uma vida de “escrava” sem tempo para respirar, por ter que acumular as horas de trabalho no emprego com as horas de trabalho doméstico, que muitos homens insistem em não assumir como suas, deixando o fardo para a esposa, tornando-se eles próprios num fardo acrescido, mas acaba “escrava” da família por perder na totalidade a sua autonomia económica. E se muitas famílias há que sabem gerir esta situação com alguma justiça, outras há, e desengane-se se julga que são poucas, onde a mulher por amor à família se colocou na triste posição de dependente do seu marido, tendo que esperar a sua boa vontade e a sua generosidade para comprar as coisas mais básicas.

Não podemos falar de empoderamento ou emancipação feminina sem falar de dinheiro e independência financeira. Não há confiança, autodeterminação e independência de espírito que resistam se as seguintes palavras tiverem que ser proferidas amiúde em forma de pedido: “preciso de dinheiro para as compras do mês”, “preciso de dinheiro para comprar cuecas novas”, “acabou o gás, preciso de dinheiro para uma botija nova”, “preciso de dinheiro para levar o miúdo ao médico e para a farmácia”.

Ora como o nosso estado social está longe de chegar à situação que já se verifica noutros países, onde as mães – ou os pais que o desejem – recebem um salário para ficarem em casa a cuidar das crianças pequenas, então só nos resta uma opção: a consciencialização da sociedade para a necessidade de nos vermos como parceiros quando assumimos uma relação, o fim desta dicotomia que nos coloca em cantos opostos, o fim das relações como lutas de poder. Resumindo e concluindo: a igualdade de géneros.

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