O Neandertal confuso

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Imaginem a situação:
Supermercado pequeno, domingo à tarde, corredores quase vazios, silêncio apenas quebrado
pelo som dos sacos que eu própria ia arrancando e abrindo para colocar as frutas e os legumes
que ia escolhendo (sim, é isso mesmo, os meus domingos à tarde são uma loucura!)
Pelo canto do olho vejo aproximar-se um casal jovem (ok, dêem-me lá um desconto; para mim
jovem é quem tiver uma idade próxima da minha, apesar de eu já não ser jovem e estar na
meia idade – cruzes que isto até doí a escrever). Ela vem ligeiramente à frente, mas ambos se
encaminham para a entrada do supermercado. Ela diz-lhe:
– Pega aí num cestinho.
E já com um pé dentro do supermercado, ele volta dois a atrás para conseguir pegar no cesto e
atira, em voz alta e em jeito de crítica:
– Fda-se, outra vez às compras! Mas tu não queres mais nada! Muito gostas de compras, ca*lho.
A esposa, essa, manteve o mesmo ar de cansaço e enfado que lhe vinha estampado no rosto
desde sempre (desconfio que não era só por estar a passar a tarde de domingo no
supermercado) e respondeu com um tom monocórdico e sem ânimo, enquanto também ela
pegava num saco para começar a encher fruta e legumes:
– E nunca temos nada em casa.
Ora, esta parte merece uma pausa para reflexão: então o Neandertal (sim, era este o espécime
confuso) estacionou ou viu estacionar no parque do supermercado; esperou que as portas
deslizantes se abrissem e entrou; encaminhou-se para a entrada do supermercado e só
quando a esposa lhe pediu para pegar num cesto é que percebeu que ia às compras? Será que
pensou que ia à bola? Nunca se sabe…
E que ia comprar a esposa do confuso? Legumes e frutas! Depois de ouvir a frase que ele fez
questão de dizer alto e bom som, não fosse eu ou a senhora da caixa, ou até o senhor da
charcutaria ao fundo da loja, deixar de ouvir, imaginei que ela iria comprar vernizes e cremes e
outros bens de consumo dedicados a si e só a si. Mas não, ela ia às compras para a família.
Abastecer a casa, onde ele também morava e comia, com bens essenciais e perecíveis que
exigem muitas viagens ao supermercado ou outras lojas que tais: os frescos. Fiquei a pensar no
ridículo que é uma mulher assumir como sua, não por escolha real, mas por falta de opção, a
tarefa de manter em casa todos os alimentos necessários para que à família não falte nada,
para que todos estejam bem nutridos e com qualidade, e ainda ter que ouvir críticas, bocas
foleiras e atrozes, daquela pessoa que poderia e DEVERIA partilhar essa tarefa. Ele não só não
o fez, como ainda se sentiu no direito de criticar quem o fez corretamente.
Apesar de o ter ouvido, apesar de ter sentido a urticaria típica que me assola quando oiço
frases machistas, ainda assim, pensei de mim para os meus botões que este poderia não
passar de um pateta alegre, que não sabe o valor do silêncio, que não tem a menor noção do
que é uma boa piada e que apenas se quis mostrar engraçadinho. Engraçadinho para quem?
Talvez para a mulher, que deve estar pelos cabelos com estas piadas ocas e patéticas, mas
como ele não se dá ao trabalho de raciocinar, também não se deu ao trabalho de verificar se a
esposa lhe acha piada ou não. Ou talvez fosse eu a destinatária daquela pseudo-piada, já que
era a única pessoa por perto.
Mas a história não termina aqui. Eu continuei a minha escolha dos frescos, tal como a esposa
dele também continuou. Como o supermercado era pequeno, pude olhá-la de perto e não
descortinei nada mais do que cansaço e enfado atrás das suas expressões imutáveis e do seu
olhar. Ele continuava a curta distância como que um mero acessório. Não pegou em nenhum
saco por iniciativa própria e não escolheu nenhum legume, a não ser quando a esposa lhe
disse:
– Vai ali e escolhe beringela.
E ele lá foi. Escolheu uma, colocou-a no saco e depois virou-se para a esposa e disse:
– Esta chega?
Como me olhou logo de seguida (nesta altura o nosso olhar cruzou-se) e se lembrou que eu,
uma perfeita estranha, estava a ouvir, acrescentou com tom basofento:
– Ah, nem sei para que te estou a perguntar. Sou sempre eu que compro estas coisas. Sou eu
que sei disto lá em casa!
Felizmente os meus frescos estavam escolhidos e a última coisa que fiz foi olhar de soslaio
aquela mulher, reparar mais uma vez no ar de enfado e resignação que ela transportava
estampados no rosto e saí dali, porque ouvi-lo estava já a exigir mais paciência do que aquela
que eu tinha para dispensar, naquele domingo à tarde, às compras num supermercado.
E por que é que eu digo que este Neandertal estava confuso: porque não sabia de todo qual o
seu papel. Estava ali, feito barata-tonta, empurrado pelas circunstâncias e arrogando-se o
direito de as criticar, mas não de fazer parte delas deveras. Ainda assim, sentiu vergonha de se
assumir como mero espectador, quis chamar para si protagonismo quando viu que tinha
audiência.
Este episódio fez-me lembrar passagens de outros tempos, mas que são em grande parte
similares a estes. A minha mãe contava que o meu pai não queria que perfeitos estranhos –
um qualquer dono de loja, comerciante ou demais clientes dos espaços comerciais – a vissem,
a ela, a pagar, porque se sentia diminuído, saía com o ego ferido, por ser percebido por
estranhos como o macho que não cumpria a sua função de provedor da família. Por outro
lado, não tinha qualquer pejo em que essas expectativas por parte da família saíssem goradas,
defraudadas. Ele não provia, apenas queria passar essa imagem a estranhos.
O Neandertal fez igual: criticou a esposa por se dedicar a uma atividade nada máscula –
comprar legumes – como quem se viu na contingência de ali estar porque ela queria e nunca
por escolha própria e depois chamou para si uma competência que claramente não tinha e
que a esposa sabia que ele não tinha; não se coibiu de envergonhar a mulher, de mentir na
presença dela, de se apropriar parcialmente do seu trabalho, mas somente com o propósito de
preservar a sua imagem perante estranhos. Escolheu ficar com a parte fácil: falar.
Os Neandertais estão entre nós, grunhem desajeitadamente e sem pejo, mas só na medida em
que a sua vidinha permaneça confortável à conta do trabalho dos outros e nunca alterando
comportamentos, porque – convenhamos – isso dá trabalho e MUITO!
E o que mais me intriga e exaspera nestes episódios é o facto de a perceção dos estranhos ser
a única preocupação, a perceção da família e daqueles que com quem se convive de forma
constante não é importante. Por mais voltas que dê, é uma lógica que me escapa.
E percebo agora que ao longo do texto me esqueci de explicar qual seria o comportamento
digno e evoluído para o neandertal em questão. Tudo nesta história me parece tão surreal,
que a tentação é acreditar que ele sabia o que fazer, só escolheu não o fazer. Mas na hipótese
remota de haver aí mais alguém confuso, aqui fica a listagem:
1º Não criticava a mulher por abastecer a sua casa com as compras básicas;
2º Se a estava a acompanhar, então procurava ser uma boa companhia conversando sobre
alguma coisa ou ajudando na medida que sabia (nem que fosse só buscar os saquinhos
plásticos);
3º Aproveitava a ocasião para aprender quais os legumes e frutas que a casa gasta e poderia,
numa próxima ocasião, fazer compras sozinho e sem supervisão.
4º Em vez de ficar ali parado a olhar pró balão, poderia ir procurar os outros produtos em falta
para que as compras terminassem rapidamente.
5º Não mentia assumindo um papel que não tinha na gestão da casa, em vez disso procurava
perceber o que a mulher comprava e porquê para poder participar deveras.
Helena Barreto Ferreira

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