García Lorca: um crime infame e a intolerância
Num momento em que tanto se debate o apoio das democracias ocidentais a Estados ou povos sob ataque de potências estrangeiras, o que se passou há quase noventa anos, aqui ao lado – em Espanha -, diz-nos a que destino se chega quando a inércia é a resposta que se dá à intolerância.
A Guerra Civil de Espanha, que ocorreu entre 1936 e 1939, por vezes é descrita como a última guerra “romântica” da História. A contribuir para isso estará, porventura, o facto de ter sido uma guerra que teve uma forte contribuição de brigadas internacionais de voluntários, vários destes foram escritores cujo mito transcendeu as folhas dos livros que escreveram – dos quais destaco Ernest Hemingway e, em especial, George Orwell. Este último lutou na zona de Barcelona, ficando inclusive gravemente ferido numa das batalhas. Em 1938, escreveria sobre essa experiência um dos seus mais aclamados livros: “Homenagem à Catalunha”. Uma das citações mais conhecidas desse livro descreve bem o estado de espírito vivido naquele tempo: “Numa parede em ruínas, deparei-me com um cartaz que datava do ano anterior e anunciava que “seis belos touros” seriam mortos na arena em tal e tal data. Como pareciam desoladas as suas cores esbatidas. Onde estavam agora os belos touros e os bonitos toureiros? Parece que mesmo em Barcelona quase não havia touradas hoje em dia – por alguma razão todos os melhores toureiros [matadors – em inglês] eram Fascistas” (tradução livre minha, a partir da versão original inglesa, “Homage to Catalonia”).
A história de que vos falo hoje é, porém, centrada noutra pessoa. É a história de um poeta nascido na Andaluzia, onde as noites quentes de verão clamam por sonhos, paixões e dança. Um homem que, a par com os maiores intelectuais do seu tempo, se passeou pela liberdade que as ruas de Madrid só conheceriam de novo mais de quarenta anos depois do seu rasto por lá passar. Esta é a história do homem mais importante de Espanha, que morreu – segundo o também poeta e seu amigo, Luis Rosales – pela mera ambição política de alguém que nunca representou nada. Esta é a história de um mito. Esta é a história de Federico García Lorca.
Se a Guerra Civil de Espanha precisasse de um início simbólico, a madrugada do fuzilamento de García Lorca, a 17 de agosto de 1936, seria a sua primeira hora. Apesar de ter amigos comunistas, falangistas e republicanos, conta-se que a Federico García Lorca não interessava a política. Terá ditado a sua “sentença” de morte ter adquirido a fama de ser homossexual e espião soviético. Na realidade, nada disso interessava verdadeiramente. Naquele golpe de Estado pelas forças militares que viriam a ser mais tarde comandadas por Francisco Franco, durante a guerra e décadas após a mesma – durante a duríssima ditadura que se seguiu –, reinava apenas a intolerância e o ódio contra quem quer que fosse considerado “rojo” (conotação que em muito ultrapassava a tradução literal do termo para a língua portuguesa: “vermelho”. Rojo, naqueles anos, poderia ser qualquer pessoa que não aderisse ao ideário de Franco e do seu regime que se seguiu à guerra).
García Lorca nasceu em Fuente Vaqueros, um pequeno município em Granada. Filho de uma abastada família que explorava a produção de açúcar, as contendas que a sua família tinha com outras famílias da região, igualmente abastadas, assumiriam contornos shakespearianos se não estivéssemos a falar de uma zona rural do sul de Espanha, no meio de uma guerra civil, durante o século XX. O poeta inspirar-se-ia nessas rivalidades, numa família em particular, usando inclusive o apelido dessa família para titular a sua última obra: a peça de teatro “A Casa de Bernarda Alba”.
Passados quase noventa anos da sua morte, ninguém sabe ao certo quem é que o matou, ou tampouco alguma vez foram encontrados os seus restos mortais. Um dos vários que se vangloriou de lhe ter dado dois tiros na cabeça foi, precisamente, um dos membros da família Alba: em sinal de retaliação pela peça de teatro, claramente inspirada na sua família, que ilustrava a repressão que as mulheres sofriam no contexto familiar e social daquele período.
À época, Espanha tinha um frágil regime republicano e vivia uma grave crise económica que se arrastava desde o fim do século XIX, fulminada por derrotas em batalhas sangrentas em Marrocos, bem como – sobretudo – pela perda da colónia de Cuba. Poucos anos antes de estalar a Guerra Civil, o país estava marcado por greves de mineiros nas Astúrias, revoltas anarquistas na Catalunha, e fações políticas extremamente polarizadas por todo o território.
Neste clima, floresceu o mais brilhante poeta espanhol de todos. Federico García Lorca escrevia música com letras. Eram sobre amor e morte as suas frases. A sua Andaluzia, suas tradições e comunidades ciganas foram tema de muitos dos seus poemas, entre os quais, este trecho de “Romance Sonâmbulo”:
“Compadre, quiero cambiar
mi caballo por su casa,
mi montura por su espejo,
mi cuchillo por su manta.
Compadre, vengo sangrando,
desde los montes de Cabra.
Si yo pudiera, mocito,
ese trato se cerraba.
Pero yo ya no soy yo,
ni mi casa es ya mi casa.
Compadre, quiero morir
decentemente en mi cama.
De acero, si puede ser,
con las sábanas de holanda.
¿No ves la herida que tengo
desde el pecho a la garganta?
Trescientas rosas morenas
lleva tu pechera blanca.
Tu sangre rezuma y huele
alrededor de tu faja.
Pero yo ya no soy yo,
ni mi casa es ya mi casa.
Dejadme subir al menos
hasta las altas barandas,
dejadme subir, dejadme,
hasta las verdes barandas.
Barandales de la luna
por donde retumba el agua.”
As principais democracias ocidentais da época, França, Inglaterra e Estados Unidos da América, adotaram uma postura de neutralidade e não auxiliaram a República espanhola que, escassos meses antes da Segunda Guerra Mundial, sucumbiu às forças lideradas por Franco – forças essas que estavam fortemente apoiadas pelo regime fascista italiano de Mussolini e pelo regime nazi alemão de Hitler. O famoso quadro de Picasso (nos nossos dias, em exposição no Museu Reina Sofía, em Madrid), seria mais tarde inspirado no ataque aéreo que, durante horas, os bombardeiros alemães infligiram na pacata cidade do País Basco – Guernica. Relatos da época contam como o povo fugia para as montanhas ao redor da cidade e, à medida que subiam, momentos antes da morte, viam a cara dos pilotos que os matavam.
A história de Federico García Lorca transcende a sua obra. A sua morte representa até onde uma guerra, com a inércia dos tolerantes, leva a uma tragédia que ainda hoje se sente nas ruas de Espanha: seja através da placa que se encontra em Vigo, em homenagem à memória de Rosário Hernández – uma vendedora de jornais que foi sequestrada, violada, torturada, mutilada e assassinada num quartel falangista, cujo cadáver foi ancorado por baixo de uma chapa de ferro, junto às Ilhas Cíes; seja através da mera passagem por estradas em cujo betão subjazem valas comuns de pessoas cujos familiares nunca souberam, ou saberão, do seu paradeiro.
O que esta história significa para os dias de hoje, não cabe a mim dizer. O mundo é hoje diferente, o drama humano é, contudo, igual e a inércia dos tolerantes parece ter padrões e contornos semelhantes à deste passado que relatei. A morte e a injustiça deixam marcas diferentes nas pessoas que restam. Luis Rosales, o amigo de García Lorca, por exemplo, deixou de acreditar na política e na sociedade e, num programa televisivo, em 1977, sobre a morte do seu amigo disse:
“El hecho de la muerte ha sido la toma de consciencia más dolorosa que he tenido con la vida. Lo he dicho anteriormente. Para mí, hasta ese momento, yo había vivido de frente, yo había vivido con ilusión, yo no he visto la vida venir. A partir de ese momento, yo he vivido en una vida de… Absolutamente distinta. Yo he renunciado ya, desde entonces, a muchas cosas. No he creído, ni volveré a creer en la política. No he creído, ni volveré a creer en la sociedad. No he creído, ni volveré a creer en más que las amistades que quedan. Esa ha sido la prueba. Pero bién, esto ha sido una persona que a los 26 años se encuentra con esto que estamos diciendo antes, con que el hombre más importante de España puede morir literalmente por la ambición política de uma persona que ni representaba, ni representó, ni representará nada. Es decir, la vida del hombre más importante de España ha sido, ha dependido, de la ambición política de alguién que no ha representado literalmente nada.”
Se a morte do homem mais importante de um país pode acontecer por causa da ambição política de alguém que não representou nada na linha da História, quantas são as mortes de pessoas comuns que somamos nos jornais de hoje pela ambição política de homens que representam potências bélicas e nucleares?
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