A manipulação e o amor
Artigo de opinião de Helena Barreto Ferreira
A manipulação e o amor. Estes dois conceitos estão um para o outro como a água está para o azeite, com uma grande diferença: ninguém confunde água e azeite, mas muitas pessoas confundem atos de manipulação com manifestações de amor.
E como chegamos até aqui?
A resposta a esta pergunta é complexa e poderia estender-se por mais linhas do que eu aqui lhe quero dedicar, mas garanto-vos que passou pela romantização e normalização que foi sendo feita de atos abusivos, em especial os que tinham por alvo as mulheres, mas não em exclusivo.
Mas, do mesmo modo que somos ensinados ao longo da vida a reconhecer que nuvens escuras podem significar chuva, ou que um sobrolho carregado pode significar irritação, também a manipulação dá sinais que deveríamos aprender a ler. Uma aprendizagem que é válida para as relações amorosas, mas não só. É um saber transversal, pode ser aplicado a muitas situações do dia-a-dia.
Atenção, ser vítima de manipulação não significa ser “burra/o”, significa ser humano, empático e significa, acima de tudo, que infelizmente nos cruzamos com um predador. E o que proponho não é que deixemos a empatia ou que deixemos de confiar nas pessoas, proponho sim, que sigamos um caminho de educação: saber para reconhecer e para recusar.
Não é fácil listar as formas de manipulação, porque muitas se revestem de boas intenções, mas vou tentar listar algumas comuns:
– chantagem, de qualquer tipo e em qualquer grau, nunca é sinal de amor ou de vontade muito forte de estar na tua presença e nunca é só uma brincadeira. Se usa alguma estratégia para te levar a fazer aquilo que já disseste que não querias, ou que sabes que não devias, então é porque quer ter controlo sobre ti, não porque te ama. Por exemplo: “Disse-me que se não me fosse encontrar com ele naquele dia, iria contar aos meus pais que temos uma relação.” – o uso da ameaça não mostra o quanto te queria ou as saudades que tinha de ti: usou a ameaça para te manipular, para te forçar ao comportamento que ele queria de ti, ignorando como te podia prejudicar, o que sentias e o que querias.
– sugerir, volta e meia, que és uma sortuda por o ter – não é para te gabar deveras a sorte, é para implantar a ideia que ele é valioso, tão valioso que não podes, de forma alguma, equacionar perdê-lo, mesmo que isso signifique fazer tudo o que ele quer em detrimento do que tu queres;
– dizer que ninguém mais gostaria de ti como ele gosta – por norma vem associado à ideia anterior, e é uma forma de te manipular para que acredites que não tens valor, tens é sorte. Ninguém mais iria gostar de ti, só ele, porque ele é generoso e bom, tu não vales nada.
P.s. Não acredites: quem diz isto não te merece. Com companhia assim, estarias muito melhor sozinha.
– dizer que se o amas então não podes falar com determinada(s) pessoa(s) – só tu podes decidir com quem falas ou não falas. Falar com alguém não é trair a pessoa com quem tens uma relação. Amor não se prova deixando amizades para trás. Muito provavelmente diz isto para te isolar. Isolada e sem amigos com quem desabafar e partilhar ideias estarás muito mais fragilizada e pronta para ser dominada.
– dizer que não deves usar determinadas roupas porque são ofensivas para ele, ou porque isso iria fazer com que outros homens te desejassem – tu não tens de mudar o que gostas de vestir. A confiança dentro da relação não pode vir à custa de tu deixares de seres quem és ou de te vestires como gostas. O facto de outros homens olharem para ti, não é culpa tua: tu tens direito a existir, sem te preocupares com o que os outros pensam e ninguém te deve fazer sentir culpada pelo que os outros pensam.
– sugerir que sem ti a vida dele deixaria de fazer sentido e mais valeria morrer – uma forma eficaz de te manipular a nunca o deixares; afinal quem é que se quer sentir responsável pela morte do outro?! Na verdade ele nunca iria tirar a sua vida por isso, e mesmo que o fizesse, a culpa NUNCA seria tua: não podes viver agarrada ao medo que o outro se magoe propositadamente, não és responsável pelos seus atos.
– sugerir que numa relação tudo deve ser partilhado, que deixa de haver “eu e tu”, para passar a haver “nós” – uma ideia muito romântica e muito nefasta. Estar numa relação não deve implicar nunca perder a individualidade. Há sacrifícios a fazer em prol da relação? Sim, claro, mas não pode nunca passar pela anulação da individualidade. Para duas pessoas estarem numa juntas, elas não têm que pensar igual, agir igual – e quando isso acontece, quase com certeza que uma delas está a anular-se e a assumir a personalidade do outro.
Todos estes exemplos, apesar de recorrentes, são muitas vezes ligeiramente alterados, adquirem novas nuances e novas máscaras para disfarçar aquilo que na verdade continuam a ser: manipulação.
E neste assunto, como na maioria, o caminho da resolução passa pela educação. Educar para o respeito pelas vontades alheias e educar para o respeito pelas nossas próprias vontades. Aprender a não ceder no que nos é essencial é uma aprendizagem vital.
Esta aprendizagem inicia-se, tal como a maioria, na infância, até porque é na infância que vemos as primeiras manifestações deste processo: “assim já não sou mais tua amiga”; “se não for eu a ganhar, fico com a bola e já não jogam mais”. Estas não passam de manifestações precoces de tentativas de manipulação e é papel dos adultos intervir, sempre que presenciem estes comportamentos (literalmente sempre) e apresentar a forma correta de agir, até que este comportamento deixe de ser recurso para a criança. Simultaneamente, é importante que os adultos deem o bom exemplo e anulem de vez frases nefastas como: “se não me deres um beijinho não gosto mais de ti!”. Ensinar as crianças que o amor depende do cumprimento do que o outro pede é ensiná-las que só merecem amor se forem obedientes e esta é uma ideia totalmente errada e totalmente perversa.
Average Rating