A importância da proteção de dados pessoais: o caso paradigmático do videoporteiro
Num mundo completamente dominado pela divulgação de imagens, seja em fotografias ou vídeo, importa lembrar que há regras elementares que não podem ser violadas. Utilizar um videoporteiro para filmar a rua ou a propriedade dos vizinhos é um exemplo disso.
Passeando por qualquer rua deste país, não raras vezes nos deparámos com câmaras cujo perímetro de captação de imagens extravasa claramente o que é permitido pela lei. Antes de lá chegarmos, contudo, vejamos o porquê de a proteção de dados pessoais ser tão relevante e o porquê da sua proteção ser uma manifestação do privilégio que é viver num Estado de Direito Democrático.
Quando pensámos em proteção de dados, mesmo aqueles que não são juristas, recordar-se-ão de imediato do Regulamento Geral de Proteção de Dados (“RGPD”) – é uma denominação que aparece diariamente nas nossas vidas: desde o momento em que utilizamos uma aplicação no telemóvel, até ao momento em que prestamos consentimento para recolha de tratamento de dados quando celebramos um contrato de fornecimento de serviços, até quando estamos perante um ato médico, quando assinamos um contrato de trabalho ou qualquer outra situação.
Porém, a aprovação do RGPD pelo Parlamento Europeu e pelo Conselho, em 2016, não foi a primeira vez que, na Europa, o legislador se debruçou sobre estas matérias. Não foram sequer as primeiras normas que entraram em vigor em Portugal sobre proteção de dados, mas para melhor percebermos o quão importante este tema é, remontemos ao início da década de 80 do século passado.
O Tribunal Constitucional alemão, em 1983, decidiu que: “(…) uma ordem social na qual os cidadãos perdem a capacidade de saber quem sabe o quê sobre si, quando, em que contexto, não é consistente com o § 1.1. da Lei Fundamental”. Este artigo referia-se à dignidade da pessoa humana e o caso surgiu porque o governo alemão, à época, pretendia realizar um censos à população que, depois de recolhida essa informação, utilizá-la-ia para qualquer finalidade e de forma pouco, ou nada, transparente. Num país com memória das perseguições do governo totalitário nazi, esta medida foi fortemente contestada e, com a decisão do Tribunal Constitucional, acabou mesmo por cair por terra.
O que resultou deste acontecimento histórico serviu de base ao pensamento jurídico europeu sobre a proteção de dados pessoais dos cidadãos: o titular dos dados não pode perder o controlo da sua informação pessoal; não pode haver desconhecimento sobre a entidade que trata esses dados pessoais e qual o contexto em que ocorrem as operações de tratamento desses dados; por fim – mas não menos importante – os dados pessoais divulgados sem qualquer freio são uma forma de controlo do Estado, ficando os cidadãos expostos ao seu poder (num equilíbrio de forças que geralmente de equilibrado pouco tem).
Da mesma que forma que o Estado não pode controlar dados pessoais de cada um de nós sem obedecer a requisitos mínimos, o cidadão comum não pode colocar um videoporteiro na sua porta e captar imagens e sons da via pública ou da propriedade limítrofe. A Comissão Nacional de Proteção de Dados (“CNPD”) já se pronunciou várias vezes sobre esta matéria: está em causa a restrição de direitos, liberdades e garantias – princípios basilares da Constituição portuguesa e que são corolário de direitos fundamentais como o direito à imagem, à liberdade de movimentos e o direito à reserva da vida privada.
Em concreto, e por violação, entre outros, do artigo 19.º da Lei da Proteção de Dados (Lei n.º 58/2019, de 08 de agosto – que assegura a execução em território português do RGPD), as câmaras comumente denominadas “videoporteiro”, não podem ter como perímetro de captação: vias públicas, propriedades limítrofes ou outros locais que não sejam do domínio exclusivo do responsável pela câmara, exceto no que seja estritamente necessário para cobrir os acessos ao imóvel.
Não quer isto dizer que as pessoas não tenham o direito de utilizar câmaras para vigiar a sua propriedade privada (dentro de alguns limites, como, por exemplo, se tiver trabalhadores a laborar na sua propriedade) e também não implica que não possa utilizar videoporteiro. O que não pode é filmar locais que ultrapassam a sua propriedade. Note-se que para além de não ser permitida a captação de imagens de locais que são públicos e de propriedades privadas de terceiros, também não é permitida a captação de imagens de locais que, não sendo públicos, são protegidos pelo direito privado, no caso, por direitos reais – tão comuns na região do Minho: as servidões de passagem, por exemplo.
A captação de imagens, desde que permitidas pela lei, geralmente não implicam pedidos de autorização à CNPD ou qualquer tipo de licenciamento, mas em caso de dúvida o mais adequado será contactar profissional habilitado a prestar informações quanto ao caso em concreto ou solicitar esclarecimentos à própria CNPD.
A proteção de dados pode até conflituar com uma certa cultura de “quem não deve, não teme”, no sentido de que quem não tem nada a esconder pode divulgar informações privadas, mas a realidade é que a defesa dos nossos dados pessoais mais do que o exercício de direitos individuais, acaba por ser – se quisermos assim entendê-lo –um exercício cívico em prol de toda a comunidade.
Isabel Arantes | Mestre em Direito da Empresa e dos Negócios e Pós-graduada em Direito Intelectual | Advogada na JPAB | linkedin.com/in/isabelarantes
Foto: Isabel Arantes | Notícias do Cávado e gerada por IA.
OBS: Os textos são de opinião são da exclusiva responsabilidade dos seus autores.
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